Surdos relatam as dificuldades do dia a dia

iG Paulista - 14/04/2014 - 11h13 | 
Eleni Destro | igpaulista@rac.com.br
Cleide com os filhos Marcelo e Maurício: todos na família são surdos
Foto: Christiano Diehl Neto/Gazeta de Piracicaba
Cleide com os filhos Marcelo e Maurício: todos na família são surdos
Fazer compras, ir a uma consulta médica, acompanhar o desenvolvimento do filho na escola, realizar uma operação bancária são tarefas comuns e fáceis para a maioria da população.
 
Para os surdos se trata de um desafio e tanto, já que são poucas as pessoas que aprenderam libras, a linguagem brasileira dos sinais, e conseguem se comunicar com eles. 
 
Cinco mulheres surdas atendidas pela Apaspi (Associação do Pais e Amigos dos Surdos de Piracicaba) falaram das suas principais dificuldades.
 
E é necessário fazer a mea-culpa: precisamos da ajuda de Denise Cássia Lourenço, supervisora pedagógica da entidade, para produzir esta reportagem. 

É a dificuldade de comunicação (ou a total falta dela) a grande barreira para os surdos. Por conta dela, Débora Milani, 37, teve um casamento conturbado, que teve de ser desfeito.
 
O marido, que era ouvinte (assim eles classificam quem ouve e fala), não a entendia.
 
"Os ouvintes falam, falam e a gente não ouve. Meu marido esquecia que eu era surda. Não teve compreensão", resumiu ela que, para se divorciar, teve de levar Denise para explicar a situação ao advogado. "Denise é uma guerreira", elogia Idinete Claudio de Souza, 44. 

E Idinete faz a afirmação porque valoriza quem possa estabelecer algum canal de entendimento entre ela e outras pessoas.
 
Quando Idinete foi ter seu bebê, ninguém da equipe médica falava libras e, para o seu desespero, passou pelo procedimento sem nenhuma explicação, nenhuma palavra que a tranquilizasse.
 
"Depois que tive o bebê apareceu uma pessoa que sabia falar libras", lembra. 
 
 
 
Rosângela, Jucilene, Idinete, Cleide e Débora: “Pessoas, por favor, aprendam libras para falar com os surdos”
 
 
 
 
 
Única surda na família, se sentia excluída das conversas em casa, já que ninguém se esforçou para aprender a se comunicar com ela, problema que também atingiu Jucilene dos Santos Pamplona, 26.
 
Segundo Denise, essa rejeição é muito comum nas famílias, que querem a todo custo que o surdo fale.
 
Idinete casou e se separou, sentiu o preconceito de homens com quem pensou em se relacionar e hoje está feliz, já que namora um ouvinte disposto a aprender libras para ficar com ela. 

Silêncio em casa 

Por mais irônico que possa parecer, o fato de toda a família ser surda na casa de Cleide Aparecida Rafael, 37, é o que faz com que haja comunicação e paz entre eles. Ela, o marido e dois filhos, de 6 e 4, Marcelo e Mauricio, não ouvem nada. Só a filha Mônica, de 11 anos, ouve um pouco. 

Cleide nasceu surda e não teve muitas oportunidades de inclusão. Foi pouco à escola, por exemplo. E isso ela não quis para os filhos, que desde bebês receberam todo o atendimento necessário e freqüentam creche e escola normal em busca da inclusão.

A inclusão também foi decisiva na vida e carreira de Rosângela Alves Ramos, 34. 

Ela começou a freqüentar a Apaspi desde bebê, levada pela mãe, se comunica com facilidade até com quem não sabe libras e é a professora da linguagem de sinais das crianças da Apaspi, que foi criada há 37 anos, atende 55 pessoas de 0 a 18 anos e existe graças às contribuições da comunidade, a renda de eventos e verba pública.

Desenho universal 

A arquiteta Palloma Campello, que trabalha há dois anos a questão da acessibilidade de pessoas com deficiência, admite que há uma preocupação maior com o cadeirante. 

"É mais fácil e comum assegurar acessibilidade e adaptar o que já é conhecido e visto por muitas pessoas ao longo dos anos - barras nos banheiros, rampas, etc", diz. 

Para ela, engenheiros, arquitetos e empreendedores são dirigidos a uma vertente onde "manda quem pode, obedece quem tem juízo".
 
"Se, de uma forma genérica, sou contratado para executar o serviço X, não devo incorporar Y, uma vez que gera custo, mão de obra, materiais. Acredito que seja mais uma falha na educação cívica que qualquer outra coisa", critica. 

"Quando aprendermos que deficiência é deficiência e ponto, sem discriminação em qualquer área, os projetos serão pensados de uma forma plena, atendendo a todos os requisitos, em desenho universal, sendo útil para qualquer pessoa, de forma orgânica, como colocar janela já que precisamos respirar", analisa.

Entre as principais adaptações para deficientes auditivos, Palloma enumera a sinalização visual clara e intuitiva; sinalização luminosa para todos os casos onde a sonora se enquadre, tanto de alerta, quanto emergência; sinalização visual ou vibratória em aparelhos; sistemas intranet para comunicação em empresas; intérprete de libras e telefone para surdos.

Ações

Na luta pelos direitos das pessoas com deficiência desde o seu primeiro mandato - este é o terceiro - o vereador André Bandeira (PSDB), que é cadeirante, solicitou a criação de uma central de intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e guias para pessoas com deficiência auditiva e surdos/cegos.

"É de extrema importância que este tipo de serviço entre em vigor em nosso município. Por ser uma das situações mais complexas e emergenciais, já que possuem a deficiência auditiva ou muitas vezes a visual e dependem de informação, orientação e participação na sociedade", diz Bandeira. 

Autobiografia
“Nasci em 1975. Minha mãe teve rubéola no quarto mês de gestação. E após meu nascimento, ela percebeu que eu não atendia ao chamado dela e, assim, com um ano e pouco, recebi o diagnóstico de perda auditiva profunda. Com um ano e meio comecei a usar aparelhos auditivos e ir a uma fonoaudióloga e com dois anos eu já estava ‘falando’.

Meu trabalho hoje é divulgar o que é ser uma deficiente auditiva com perda profunda, ser oralizada e, claro, oferecer maior motivação, interesse, credibilidade e incentivo no uso de aparelhos auditivos e na oralização precoce. Destaco a importância disso, pois sou formada em uma área que ainda hoje é um grande desafio, o jornalismo.
 
 
 
Cristina Bicudo, 38 anos, deficiente auditiva oralizada
 
 
 
 
 
 
Passei por uma situação difícil, que me levou a mudar de estilo de vida, ou seja, no tempo de faculdade eu sofri lesões nos nervos auditivos, provavelmente por causa da exposição a música alta em boate. Fui internada no Einstein e quase perdi esse ‘restinho’ da audição que possuía. Porém, consegui dar a volta por cima.

Morei dois anos e meio sozinha longe da família, em Curitiba (Paraná), onde consegui meu primeiro emprego numa fábrica de automóveis em 2005. Acabei voltando para minha cidade de origem que é São Paulo, em 2007. 

Enfrentei diversas situações inusitadas e divertidas (e sei que ainda terei muitas pela frente).

As minhas primeiras palavras em inglês foram aos 5 anos, quando passei uma breve temporada nos EUA. E depois na adolescência, aprendi inglês na escola regular assim como qualquer outro aluno.

A fase mais difícil que enfrentei na minha vida foi justamente na minha adolescência.
 
Não era sempre que encontrava um garoto legal, que pudesse compreender o que eram aqueles ‘aparelhos auditivos’ que usava. Muitos se afastavam de mim por causa disso. E com o tempo, aprendi a fazer ‘seleção natural’, ou seja, não perdia tempo com esses que saíam da minha vida.

Acredito que a palavra ‘preconceito’ caminha junto com ‘falta de informação e/ou conhecimento’.
 
Portanto, sempre procuro me colocar no lugar da outra pessoa (não deficiente) e dou o primeiro passo, explicando quem ‘eu sou’. 

Em relação aos obstáculos físicos que eu enfrento hoje, o maior deles é o SAC de uma empresa. Sei que existe telefone especial para deficiente auditivo, no entanto, dependendo do problema, fica difícil escrever, ou melhor, ‘descrever’ por escrito e fazer com que a empresa compreenda o defeito do produto. 

E barreira, de verdade, senti mais na parte profissional, relacionada à Lei de Cotas.
 
O principal de tudo, mesmo com ótimos currículos ou aqueles que sofreram acidentes em fase adulta, têm que recomeçar da estaca zero na carreira (apenas para a empresa preencher a Lei de Cotas) e com salário reservado para esse tipo de contratação.

Por tudo isso foi que ‘nasceu’ a minha autobiografia, que em breve será lançada. 

No meu livro, faço uso de uma abordagem vivencial, ao relatar situações em que se poderá perceber a minha peculiar maneira de ser e de encarar desafios.

Em vista de tudo isso, ressalto a importância de conhecer pessoalmente um deficiente auditivo, pois cada pessoa é diferente e única.”

Cristina Bicudo, 38 anos, deficiente auditiva oralizada

http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/04/ig_paulista/168137-surdos-relatam-as-dificuldades-do-dia-a-dia.html

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